Enquanto as montadoras aceleram o lançamento de veículos elétricos, com promessas de portfólio 100% eletrificado a partir de 2030, o Brasil vê sua frota regular de carros envelhecer. Isso aumenta a dificuldade de o país cumprir com os compromissos assumidos para reduzir a emissão de gases que provocam o efeito estufa.
Em uma década, segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças), a idade média dos automóveis em circulação no país aumentou dois anos e 11 meses, atingindo a marca de 10 anos e cinco meses em 2021. Pelos registros do Detran de São Paulo, onde está cerca de 30% da frota brasileira, a idade média no estado aumentou quatro anos entre dezembro de 2015 e junho deste ano. No caso dos automóveis comuns, ela alcança 18,7 anos. A idade média dos caminhões é de 22,5 anos, e a dos ônibus, 16 anos.
A aceleração do envelhecimento da frota é um processo contínuo nos últimos dez anos. Em 2021, 18,3% da frota nacional tinha idade acima de 16 anos, de acordo com o Sindipeças. Com a crise econômica, que reduz a capacidade de os donos de veículos fazerem manutenção, a tendência é ter mais veículos em desconformidade com metas mais baixas de poluição.
O Brasil se comprometeu, no Acordo de Paris, a reduzir suas emissões anuais de gases de efeito estufa de 2,44 bilhões para 1,22 bilhão de toneladas de dióxido de carbono, de 2005 a 2030. Inicialmente, a maior parte dessa redução deve vir do combate ao desmatamento, que hoje representa mais de 46% dos gases estufa produzido no país, e de aprimoramentos na agricultura, que emite uma cota de 26%, segundo os últimos números do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa.
À medida que a derrubada de florestas deixar de ser tão representativa, porém, as emissões dos setores industrial e transporte devem ganhar mais importância. O CO₂ produzido pelo transporte no Brasil cresceu 118% desde 1990, de 80 milhões para 185 milhões de toneladas por ano. Se o ritmo continuar igual, não bastará acabar com o desmatamento.
A reposição de frota é importante não apenas porque motores envelhecidos emitem mais carbono por quilômetro rodado. A legislação pode obrigar veículos novos a serem fabricados com padrão melhor de eficiência.
O professor Antônio Celso Fonseca Arruda, da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp, lembra que mudanças nas leis nos últimos anos fizeram as montadoras passarem a produzir veículos que poluem cada vez menos. Mas a fiscalização não acompanhou essa evolução, afirma.
— É preciso que os agentes de trânsito tenham equipamentos simples e baratos para medir a poluição. No caso de fumaça, bastaria olhar, parar e multar — diz.
Segundo Arruda, faltam leis que impeçam os veículos de circular, caso não estejam em perfeitas condições. O principal equipamento para reduzir a poluição dos automóveis, lembra o especialista, é o catalisador, obrigatório desde 1997. Sem ele, a emissão de poluentes é 10 vezes maior. Não faltam, porém, motoristas que usam escapamento sem catalisador para baratear o preço na hora da troca. Para um BMW 8 cilindros, o catalisador chega a custar mais de R$ 16 mil. Nos carros mais populares, a partir de R$ 800.
— O Brasil só fiscaliza o veículo como patrimônio. Quando alguém vende um carro ou caminhão, verifica apenas se o documento está em ordem, se não é roubado. Não há qualquer vistoria para saber se ele está em condições seguras para rodar, muito menos se polui ou não — diz Arruda.
O professor lembra que os veículos em más condições são recolhidos em vários países. Se o dono o usa para trabalhar, como no caso dos caminhões, há programas de incentivo e financiamento para a compra de um novo.
— No resto do planeta funciona. Não precisamos inventar a roda — resume.
Segundo a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), os caminhões lideram a poluição veicular no estado, com 44%. Os automóveis comuns ocupam o segundo lugar, com 27%, seguidos por ônibus e veículos comerciais leves, com 13% cada.
Efeito de longo prazo
O engenheiro Marcelo Pereira Bales, do setor de Avaliação de Emissões Veiculares da Cetesb, afirma que o Brasil é o único país do mundo com grande frota que não possui qualquer tipo de programa de inspeção veicular. Rio e São Paulo interromperam seus programas.
— A inspeção veicular é fundamental para reduzir a emissão de poluentes pelos veículos. Não ter inspeção é quase um vexame brasileiro. Os sistemas de controle precisam de funcionamento pleno para que os proprietários façam a manutenção adequada e o investimento em tecnologia, que foi embutido no preço do carro, não se perca — diz Bales.
O engenheiro explica, porém, que os benefícios em redução de poluição e emissão de gases de efeito estufa não são imediatos, o que leva a sociedade a entender que é apenas onerada com a tarifa para inspeção.
— Se começar a fazer inspeção de veículos hoje, não haverá melhoria evidente na qualidade do ar. É um benefício para toda a sociedade e que demora para ser apurado — conclui Bales.
Sem programas que obriguem os veículos em más condições a sair de circulação, eles continuam a ser usados em regiões mais pobres ou distantes. Num país desigual como o Brasil, afirma o professor e pesquisador Paulo Saldiva, do Laboratório de Patologia Ambiental e Experimental da Faculdade de Medicina da USP, os veículos velhos apenas mudam de lugar. Em geral, para locais como periferias e municípios menores.
Para ele, não adianta apenas medir a concentração de poluentes no ar. É preciso levar em conta a dose de poluentes que cada cidadão aspira, o que depende de quanto tempo ele fica exposto diariamente e por onde circula.
— As grandes vias de tráfego são as novas chaminés. Costumam ter níveis de poluição três vezes maior do que a média da cidade — lembra o pesquisador.
Um estudo de Saldiva e outros pesquisadores entre fevereiro de 2017 e junho de 2018, com base em autópsias em 413 indivíduos que morreram na cidade de São Paulo, mostrou que a mancha deixada pela poluição no pulmão é maior nas pessoas que levam mais tempo no trânsito para se deslocar entre a casa e o trabalho. Uma hora no trânsito equivale a fumar cinco cigarros por dia. Quem mora nas periferias, distante dos polos de emprego, está mais vulnerável. Saldiva defende a adoção de meios de transporte de alta capacidade e baixa emissão de poluentes:
— A solução é repensar como vamos andar na cidade. Com crise econômica, tendência é de mais veículos que não reduzam a poluição
“O Brasil só fiscaliza o veículo como patrimônio. Não há qualquer vistoria para saber se ele está em condições seguras para rodar, muito menos se polui ou não” Antônio Celso Fonseca Arruda, Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp.